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Tendo em vista que o tema da Teologia da Libertação volta a ser tema
proeminente no meio eclesial, achamos oportuno publicar a INSTRUÇÃO “LIBERTATIS
CONSCIENTIA” do então Cardeal Joseph Ratzinger, então Prefeito da Congregação
para a Doutrina da Fé e hoje Romano Pontífice Emérito.
« A verdade nos liberta »
INTRODUÇÃO
Aspirações à liberdade
1. A consciência da liberdade e da dignidade do homem, conjugada com a
afirmação dos direitos inalienáveis da pessoa e dos povos, é uma das
características predominantes do nosso tempo. Ora, a liberdade exige condições
de ordem econômica, social, política e cultural que tornem possível o seu pleno
exercício. A viva percepção dos obstáculos que a impedem de se desenvolver e
ofendem a dignidade humana encontra-se na origem dás fortes aspirações à
libertação que hoje fermentam em nosso mundo.
A Igreja de Cristo faz suas tais aspirações, ao mesmo tempo em que
exerce seu discernimento à luz do Evangelho que, por sua própria natureza, é
mensagem de liberdade e de libertação. Com efeito, essas aspirações assumem, às
vezes, nos níveis quer teórico quer prático, expressões nem sempre conformes
com a verdade do homem, tal como esta se manifesta à luz da sua criação e da
sua redenção. Por isso, a Congregação para a Doutrina da Fé julgou necessário
chamar a atenção para « desvios, ou riscos de desvios, prejudiciais à fé e à
vida cristã ». Longe de terem perdido valor, aquelas advertências
mostram-se cada vez mais pertinentes e oportunas.
Finalidade da Instrução
2. A Instrução « Libertatis Nuntius » acerca
de alguns aspectos da teologia da libertação anunciava que a Congregação
tencionava publicar um segundo documento, que poria em evidência os principais
elementos da doutrina cristã acerca da liberdade e da libertação. A presente
Instrução responde a esse intento. Entre os dois documentos existe uma relação
orgânica. Devem ser lidos um à luz do outro.
Sobre o tema deles, presente na medula da mensagem evangélica, o
Magistério da Igreja tem se manifestado em numerosas ocasiões. O
atual documento limita-se a indicar os seus principais aspectos teóricos e práticos. Quanto
às aplicações que dizem respeito às diversas situações locais, compete às
Igrejas particulares, em comunhão entre elas e com a Sé de Pedro,
providenciá-las diretamente.
O tema da liberdade e da libertação tem uma evidente dimensão ecumênica.
Com efeito, ele pertence ao patrimônio tradicional das Igrejas e comunidades
eclesiais. Por isso mesmo o presente documento pode ajudar o testemunho e a
ação de todos os discípulos de Cristo, chamados a responder aos grandes
desafios do nosso tempo.
A verdade que nos liberta
3. A palavra de Jesus: «A verdade vos libertará » (Jo 8,
32) deve iluminar e guiar, neste terreno, todas as reflexões teológicas e todas
as decisões pastorais.
Essa verdade, que vem de Deus, tem o seu centro em Jesus Cristo,
Salvador do mundo. D'Ele, que é « o Caminho, a Verdade e a Vida » (Jo 14,
6), a Igreja recebe aquilo que ela oferece aos homens. No mistério do Verbo
encarnado e redentor do mundo, ela vai buscar a verdade sobre ó Pai e seu amor
por nós como a verdade sobre o homem e sobre a sua liberdade.
Por sua cruz e ressurreição, Cristo realizou a nossa redenção: esta é a
liberdade em seu sentido mais forte, já que ela nos libertou do mal mais
radical, isto é, do pecado e do poder da morte. Quando a Igreja, instruída por
seu Senhor, eleva a sua oração ao Pai: « livrai-nos do mal », ela está suplicando
que o mistério da salvação se manifeste, com potência, na nossa existência de
cada dia. Ela sabe que a cruz redentora é, verdadeiramente, a fonte da luz e da
vida e o centro da história. A caridade que a inflama faz com que proclame a
Boa-Nova e, através dos sacramentos, distribua os seus frutos vivificantes. É
de Cristo redentor que partem o seu pensamento e a sua ação, quando, diante dos
dramas que dilaceram o mundo, ela reflete sobre o significado e os caminhos da
libertação e da verdadeira liberdade.
A verdade, a começar pela verdade sobre a redenção, que está no âmago do
mistério da fé, é, pois, a raiz e a regra da liberdade, fundamento e medida de
qualquer ação libertadora.
A verdade, condição da liberdade.
4. A abertura à plenitude da verdade impõe-se à consciência moral
do homem; este deve este deve procurá-la e estar pronto para acolhê-la, quando
ela se manifesta.
Segundo a ordem de Cristo Senhor, a verdade evangélica deve ser
apresentada a todos os homens, e estes têm o direito de que ela lhes seja
apresentada. Seu anúncio, na potência do Espírito, comporta o pleno respeito da
liberdade de cada um e a exclusão de qualquer forma de coação e de pressão.
O Espírito Santo introduz a Igreja e os discípulos de Cristo Jesus na «
verdade plena » (Jo 16, 13). Ele dirige o curso dos tempos e «
renova a face da terra » (Sl 104, 30). É Ele que se faz presente no
amadurecimento de uma consciência mais respeitosa da dignidade da pessoa
humana. O Espírito Santo encontra-se na origem da coragem, da audácia e do
heroísmo: « Onde se acha o Espírito do Senhor, aí está a liberdade » (2 Cor 3,
17).
CAPÍTULO I
A SITUAÇÃO DA LIBERDADE NO MUNDO DE
HOJE
I. Conquistas e ameaças do processo
moderno de libertação
A herança do cristianismo
5. Revelando ao homem a sua qualidade de pessoa livre, chamada a entrar
em comunhão com Deus, o Evangelho de Jesus Cristo provocou uma tomada de
consciência das profundidades – até então inimagináveis – da liberdade humana.
Assim, a busca da liberdade e a aspiração à libertação, que se encontram
entre os principais sinais dos tempos do mundo contemporâneo, têm sua raiz
primeira na herança do cristianismo. Esta afirmação é válida, mesmo quando elas
assumem formas aberrantes, chegando a se oporem à visão cristã do homem e do
seu destino. Sem essa referência ao Evangelho, a história dos séculos recentes,
no Ocidente, permaneceria incompreensível.
A época moderna
6. Desde a aurora do mundo moderno, na Renascença, pensava-se que o
retorno à Antiguidade em filosofia e nas ciências da natureza deveria
possibilitar ao homem a conquista da liberdade de pensamento e de ação, graças
ao conhecimento e ao controle das leis da natureza.
Por outro lado, Lutero, a partir da sua leitura de São Paulo, pretendia
lutar pela libertação do jugo da Lei, representada, a seus olhos, pela Igreja
do seu tempo.
Mas é, sobretudo, no Século das Luzes e na Revolução Francesa que o
apelo à liberdade ressoa com toda a sua força. Desde então, muitos veem a
história por vir como um irresistível processo de libertação que deve conduzir
o homem a uma era em que, enfim totalmente livre, ele poderá gozar a
felicidade, já a partir desta terra.
Rumo ao domínio sobre a natureza
7. Na perspectiva de uma tal ideologia de progresso, o homem pretendia
tornar-se senhor da natureza. A servidão, que até então era a sua, baseava-se
na ignorância e nos preconceitos. Extraindo da natureza os seus segredos, o
homem submetê-la-ia ao seu serviço. Dessa forma, a conquista da liberdade era a
meta que se buscava através do desenvolvimento da ciência e da técnica. Os
esforços despendidos alcançaram sucessos notáveis. Embora o homem não esteja
isento das catástrofes naturais, muitas das ameaças da natureza foram afastadas.
O alimento é assegurado a um número crescente de indivíduos. As possibilidades
de transporte e de comércio favorecem o intercâmbio dos recursos alimentares,
das matérias-primas, da força de trabalho, das capacidades técnicas, de sorte
que se pode razoavelmente prognosticar uma existência na dignidade e livre da
miséria para os seres humanos.
Conquistas sociais e políticas
8. O movimento moderno de libertação propunha-se uma finalidade política
e social. Ele deveria pôr um fim à dominação do homem sobre o homem e promover
a igualdade e a fraternidade de todos os homens. Que, nesse campo, tenham sido
alcançados resultados positivos, é um fato inegável. A escravidão e a servidão
legais foram abolidas. O direito de todos à cultura fez significativos
progressos. Em numerosos países, a lei reconhece a igualdade entre homem e
mulher, a participação de todos os cidadãos no exercício do poder político e os
mesmos direitos para todos. O racismo é rejeitado como contrário ao direito e à
justiça. A formulação dos direitos do homem significa uma consciência mais viva
da dignidade de todos os homens. Comparando-se com os sistemas anteriores de
dominação, as conquistas da liberdade e da igualdade, em numerosas sociedades,
são inegáveis.
Liberdade de pensar e de querer
9. Enfim e, sobretudo, o movimento moderno de libertação deveria trazer
ao homem a liberdade interior, sob a forma de liberdade de pensar e liberdade
de querer. Ele pretendia libertar o homem da superstição e dos medos
ancestrais, percebidos como outros tantos obstáculos ao seu desenvolvimento.
Era seu propósito dar ao homem a coragem e a audácia de se servir da sua razão,
sem que o temor o detivesse diante das fronteiras do desconhecido. Dessa forma,
especialmente nas ciências históricas e nas ciências humanas, desenvolveu-se um
novo conhecimento do homem, destinado a ajudá-lo a se compreender melhor, no
que diz respeito ao seu desenvolvimento pessoal ou às condições fundamentais da
formação da comunidade.
Ambiguidades do processo moderno de libertação
10. Quer se trate da conquista da natureza, da vida social e política ou
do domínio do homem sobre ele mesmo, em plano individual e coletivo, todos
podem constatar que não somente os progressos realizados estão longe de
corresponder às ambições iniciais, mas também que novas ameaças, novas
servidões e novos terrores surgiram, à medida que se ampliava o movimento
moderno de libertação. É um sinal de que graves ambiguidades acerca do sentido
mesmo da liberdade, já desde a sua origem, corroíam por dentro esse movimento.
O homem ameaçado por seu domínio da natureza
11. Foi assim que, na medida em que se libertava das ameaças da
natureza, o homem passou a sentir um medo crescente diante de si mesmo. A
técnica, subjugando sempre mais a natureza, corre o risco de destruir os
fundamentos de nosso próprio futuro, de modo que a humanidade de hoje torna-se
a inimiga das gerações futuras. Ao reduzir à servidão, com um poder cego, as
forças da natureza, não se está destruindo a liberdade dos homens de amanhã?
Que forças podem proteger o homem da escravidão de sua própria dominação?
Torna-se necessária uma capacidade de liberdade e de libertação totalmente nova
e que exige um processo de libertação inteiramente renovado.
Riscos da potência tecnológica
12. A força libertadora do conhecimento científico concretiza-se nas
grandes realizações tecnológicas. Quem dispõe das tecnologias, possui o poder
sobre a terra e sobre os homens. Daí nascem formas de desigualdade, até então
desconhecidas, entre os detentores do saber e aqueles que simplesmente utilizam
a técnica. A nova potência tecnológica está ligada ao poder econômico e leva à
sua concentração. Dessa forma, no interior dos povos e entre os povos,
formaram-se relações de dependência que, nos últimos vinte anos, deram ocasião
a uma nova reivindicação de libertação. Como impedir que a potência tecnológica
não se torne um poder de opressão de grupos humanos ou de povos inteiros?
Individualismo e coletivismo
13. Na área das conquistas sociais e políticas, uma das ambiguidades
fundamentais da afirmação da liberdade, no século das Luzes, está ligada à
concepção do sujeito dessa liberdade como indivíduo que se basta a si mesmo e
tendo com fim a satisfação de seu interesse próprio no gozo dos bens
terrestres. A ideologia individualista inspirada por tal concepção do homem
favoreceu, nos inícios da era industrial, a desigual repartição das riquezas, a
um ponto tal que os trabalhadores viram-se excluídos do acesso aos bens
essenciais, para cuja produção tinham contribuído e aos quais tinham direito.
Daí nasceram pujantes movimentos de libertação da miséria mantida pela
sociedade industrial.
Cristãos – leigos e pastores – não deixaram de lutar por um
reconhecimento equitativo dos legítimos direitos dos trabalhadores. Em favor
dessa causa, o Magistério da Igreja elevou a sua voz, em diversas ocasiões.
Muito frequentemente, porém, a justa reivindicação do movimento operário
conduziu a novas servidões, por inspirar-se em concepções que, ignorando a
vocação transcendente da pessoa humana, atribuíam ao homem um fim meramente
terrestre. Algumas vezes, ela voltou-se para projetos coletivistas, que
gerariam injustiças tão graves quanto às que pretendiam pôr um fim.
Novas formas de opressão
14. Dessa forma, a nossa época viu nascer os sistema totalitários e
formas de tirania, que não teriam sido possíveis em épocas anteriores à
expansão tecnológica. Por um lado, a perfeição tecnológica foi aplicada em
genocídios. Por outro lado, praticando o terrorismo, que causa a morte de
inúmeros inocentes, minorias pretendem derrotar inteiras nações.
O controle, hoje, pode insinuar-se até no interior dos indivíduos; e
mesmo as dependências criadas pelos sistemas de prevenção podem representar
potenciais ameaças de opressão. Uma falsa libertação das coações da sociedade é
procurada no recurso à droga, que, no mundo todo, leva muitos jovens à
autodestruição, lançando famílias inteiras na angústia e na dor.
Riscos de destruição total
15. Torna-se cada vez mais débil o reconhecimento de uma ordem jurídica
como garantia do relacionamento dentro da grande família dos povos. Quando a
confiança no direito não parece mais oferecer uma proteção suficiente, busca-se
a segurança e a paz em uma ameaça recíproca, que se torna um risco para toda a
humanidade. As forças que deveriam servir ao desenvolvimento da liberdade
servem para aumentar as ameaças. Os instrumentos de morte que se opõem, hoje,
são capazes de destruir toda a vida humana sobre a terra.
Novas relações de desigualdade
16. Entre as nações dotadas de poderio e as que dele são privadas
instalaram-se novas relações de desigualdade e de opressão. A busca do
interesse próprio parece ser a regra das relações internacionais, sem que se
leve em consideração o bem comum da humanidade.
O equilíbrio interno das nações pobres é rompido pela importação das
armas, introduzindo nelas um fator de divisão que conduz ao domínio de um grupo
sobre outro. Que forças poderiam eliminar o recurso sistemático às armas,
restituindo ao direito a sua autoridade?
Emancipação das nações jovens
17. É no contexto da desigualdade das relações de força que apareceram
os movimentos de emancipação das nações jovens, geralmente nações pobres, ainda
recentemente submetidas ao domínio colonial. Muito frequentemente, porém, o
povo é privado de uma independência duramente conquistada, por regimes ou
tiranias sem escrúpulos, que tripudiam impunemente sobre os direitos do homem.
Dessa forma, o povo, reduzido à impotência, apenas mudou de dono.
Permanece, no entanto, como um dos maiores fenômenos do nosso tempo, em
escala de inteiros continentes, o despertar da consciência do povo que,
esmagado pelo peso da secular miséria, aspira a uma vida na dignidade e na
justiça e está pronto a bater-se por sua liberdade.
A moral e Deus: obstáculos para a libertação?
18. Com relação ao movimento moderno de libertação interior do homem,
deve-se constatar que o esforço para libertar de seus limites o pensamento e a
vontade chegou ao ponto de considerar que a moralidade como tal constituía um
limite irracional que o homem, decidido a se tornar senhor de si mesmo, devia
ultrapassar.
Mais ainda: para muitos, é o próprio Deus que seria a alienação
específica do homem. Entre a afirmação de Deus e a liberdade humana haveria uma
radical incompatibilidade. Rejeitando a fé em Deus, o homem, enfim,
tornar-se-ia livre.
Questões angustiantes
19. Aqui se encontra a raiz das tragédias que acompanham a história
moderna da liberdade. Por que essa história, apesar de grandes conquistas que,
aliás, permanecem sempre frágeis, experimenta frequentes recaídas na alienação
e vê surgir novas servidões? Por que movimentos de libertação, que suscitaram
imensas esperanças, vão desaguar em regimes para os quais a liberdade dos
cidadãos, a começar pela primeira delas, que é a liberdade religiosa, é
o primeiro inimigo?
Quando o homem pretende libertar-se da lei moral e tornar-se
independente de Deus, longe de conquistar a sua liberdade, ele a destrói.
Fugindo da medida da verdade, ele torna-se presa do arbitrário; entre os
homens, as relações fraternas são abolidas, para dar lugar ao terror, ao ódio e
ao medo.
O profundo movimento moderno de libertação permanece ambíguo, porque foi
contaminado por erros mortais acerca da condição do homem e da sua liberdade.
Ele carrega, simultaneamente, promessas de verdadeira liberdade e ameaças de
mortais servidões.
II. A liberdade na experiência do Povo
de Deus
Igreja e liberdade
20. Porque consciente dessa mortal ambiguidade, a Igreja, pelo seu
Magistério, elevou a sua voz, ao longo dos últimos séculos, alertando para os
desvios que ameaçam desvirtuar o élan libertador, transformando-o em amargas
decepções. Naqueles momentos, muitas vezes, ela foi incompreendida. Com o recuo
do tempo, torna-se possível reconhecer a exatidão do seu discernimento.
Foi em nome da verdade sobre o homem, criado à imagem de Deus, que a
Igreja interveio.Entretanto, acusam-na de ser um obstáculo no caminho da
libertação. Sua constituição hierárquica opor-se-ia à igualdade; seu Magistério
iria contra a liberdade de pensamento. Certamente, houve erros de julgamento ou
omissões graves, de que, ao longo dos séculos, os cristãos foram responsáveis. Mas
tais objeções desconhecem a verdadeira natureza das coisas. A diversidade dos
carismas no povo de Deus, que são carismas de serviço, não é contrária à igual
dignidade das pessoas e à sua comum vocação à santidade.
A liberdade de pensamento, como condição de busca da verdade em todos os
domínios do saber humano, não significa que a razão humana deva fechar-se às
luzes da Revelação, cujo depósito Deus confiou à sua Igreja. Abrindo-se à
verdade divina, a razão criada encontra um desabrochamento e uma perfeição que
constituem uma forma eminente de liberdade. Por outro lado, o Concílio Vaticano
II reconheceu plenamente a legítima autonomia das ciências, como também
das atividades de ordem política.
A liberdade dos pequeninos e dos pobres
21. Um dos principais erros que contaminou gravemente o processo de
libertação, desde o Iluminismo, consiste na convicção largamente difundida de
que os progressos realizados no campo das ciências, da técnica e da economia,
deveriam servir de fundamento para a conquista da liberdade. Desconhecia-se,
dessa forma, a profundidade da mesma liberdade e das suas exigências.
Essa realidade profunda da liberdade, a Igreja sempre a experimentou,
sobretudo através da vida de uma multidão de fiéis, especialmente entre os
pequeninos e os pobres. Na sua fé, eles sabem que são objeto do amor infinito
de Deus. Cada um deles pode afirmar: « Vivo pela fé no Filho de Deus, que me
amou e se entregou a si mesmo por mim » (Gl 2, 20b). Tal é a sua
dignidade, que nenhuma das potências lhes pode arrancar; tal é a alegria
libertadora neles presente. Sabem que a eles é dirigida também a palavra de
Jesus: « Não mais vos chamo servos, pois o servo não sabe o que seu amo faz;
mas eu vos chamo amigos, pois tudo o que ouvi do Pai eu vos dei a conhecer » (Jo 15,
15). Essa participação no conhecimento de Deus é a sua emancipação com relação
à pretensão de dominação por parte dos detentores do saber: « Todos possuís a
ciência ... e não tendes necessidade de que alguém vos ensine » (1 Jo 2,
20b. 27b). Eles têm consciência também de participarem do conhecimento mais
elevado a que a humanidade é chamada. Sabem-se amados por Deus como todos
os outros e mais que todos os outros. Vivem, assim, na liberdade que provém da
verdade e do amor.
Recursos da religiosidade popular
22. O mesmo sentido da fé do povo de Deus, na sua devoção cheia de
esperança à cruz de Jesus, percebe a força contida no mistério de Cristo
redentor. Longe, pois, de desprezar ou querer suprimir as formas de
religiosidade popular que essa devoção assume, é preciso, ao contrário,
destacar e aprofundar toda a sua significação e todas as suas implicações. Ela
constitui um fato de dimensão teológica e pastoral fundamental: são os pobres,
objeto da predileção divina, que melhor compreendem – e como que por instinto –
que a libertação mais radical, que é libertação do pecado e da morte, é aquela
que foi realizada pela morte e ressurreição de Cristo.
Dimensão soteriológica e ética da libertação
23. A força dessa libertação penetra e transforma em profundidade o
homem e sua história, em sua atualidade presente, e anima o seu élan escatológico.
O sentido primário e fundamental da libertação que assim se manifesta é o
sentido soteriológico: o homem é libertado da escravidão radical do mal e do
pecado.
Nessa experiência da salvação, o homem descobre o verdadeiro sentido da
sua liberdade, já que a libertação é restituição da liberdade. Ela é também
educação da liberdade, isto é, educação para o reto uso da liberdade. Dessa
forma, à dimensão soteriológica da libertação acrescenta-se a sua dimensão
ética.
Uma nova fase da história da liberdade
24. Em graus diversos, o sentido da fé, que se encontra na origem de uma
experiência radical de libertação e da liberdade, impregnou a cultura e os
costumes dos povos cristãos.
Hoje, porém, de um modo totalmente novo, por causa dos terríveis
desafios que a humanidade deve enfrentar, torna-se necessário e urgente que o
amor de Deus e a liberdade na verdade e na justiça imprimam a sua marca nas,
relações entre os homens e entre os povos e animem a vida das culturas.
Pois onde faltam a verdade e o amor, o processo de libertação leva à
morte de uma liberdade que terá perdido qualquer base de apoio.
Abre-se diante de nós uma nova fase da história da liberdade. As
capacidades libertadoras da ciência, da técnica, do trabalho, da economia e da
ação política, só darão frutos se encontrarem sua inspiração e medida na
verdade e no amor mais fortes do que o sofrimento, revelados aos homens por
Jesus Cristo.
Tendo em vista que o tema da Teologia da Libertação volta a ser tema proeminente no meio eclesial, achamos oportuno publicar a INSTRUÇÃO “LIBERTATIS CONSCIENTIA” do então Cardeal Joseph Ratzinger, então Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e hoje Romano Pontífice Emérito.
« A verdade nos liberta »
INTRODUÇÃO
Aspirações à liberdade
1. A consciência da liberdade e da dignidade do homem, conjugada com a
afirmação dos direitos inalienáveis da pessoa e dos povos, é uma das
características predominantes do nosso tempo. Ora, a liberdade exige condições
de ordem econômica, social, política e cultural que tornem possível o seu pleno
exercício. A viva percepção dos obstáculos que a impedem de se desenvolver e
ofendem a dignidade humana encontra-se na origem dás fortes aspirações à
libertação que hoje fermentam em nosso mundo.
A Igreja de Cristo faz suas tais aspirações, ao mesmo tempo em que
exerce seu discernimento à luz do Evangelho que, por sua própria natureza, é
mensagem de liberdade e de libertação. Com efeito, essas aspirações assumem, às
vezes, nos níveis quer teórico quer prático, expressões nem sempre conformes
com a verdade do homem, tal como esta se manifesta à luz da sua criação e da
sua redenção. Por isso, a Congregação para a Doutrina da Fé julgou necessário
chamar a atenção para « desvios, ou riscos de desvios, prejudiciais à fé e à
vida cristã ». Longe de terem perdido valor, aquelas advertências
mostram-se cada vez mais pertinentes e oportunas.
Finalidade da Instrução
2. A Instrução « Libertatis Nuntius » acerca
de alguns aspectos da teologia da libertação anunciava que a Congregação
tencionava publicar um segundo documento, que poria em evidência os principais
elementos da doutrina cristã acerca da liberdade e da libertação. A presente
Instrução responde a esse intento. Entre os dois documentos existe uma relação
orgânica. Devem ser lidos um à luz do outro.
Sobre o tema deles, presente na medula da mensagem evangélica, o
Magistério da Igreja tem se manifestado em numerosas ocasiões. O
atual documento limita-se a indicar os seus principais aspectos teóricos e práticos. Quanto
às aplicações que dizem respeito às diversas situações locais, compete às
Igrejas particulares, em comunhão entre elas e com a Sé de Pedro,
providenciá-las diretamente.
O tema da liberdade e da libertação tem uma evidente dimensão ecumênica.
Com efeito, ele pertence ao patrimônio tradicional das Igrejas e comunidades
eclesiais. Por isso mesmo o presente documento pode ajudar o testemunho e a
ação de todos os discípulos de Cristo, chamados a responder aos grandes
desafios do nosso tempo.
A verdade que nos liberta
3. A palavra de Jesus: «A verdade vos libertará » (Jo 8,
32) deve iluminar e guiar, neste terreno, todas as reflexões teológicas e todas
as decisões pastorais.
Essa verdade, que vem de Deus, tem o seu centro em Jesus Cristo,
Salvador do mundo. D'Ele, que é « o Caminho, a Verdade e a Vida » (Jo 14,
6), a Igreja recebe aquilo que ela oferece aos homens. No mistério do Verbo
encarnado e redentor do mundo, ela vai buscar a verdade sobre ó Pai e seu amor
por nós como a verdade sobre o homem e sobre a sua liberdade.
Por sua cruz e ressurreição, Cristo realizou a nossa redenção: esta é a
liberdade em seu sentido mais forte, já que ela nos libertou do mal mais
radical, isto é, do pecado e do poder da morte. Quando a Igreja, instruída por
seu Senhor, eleva a sua oração ao Pai: « livrai-nos do mal », ela está suplicando
que o mistério da salvação se manifeste, com potência, na nossa existência de
cada dia. Ela sabe que a cruz redentora é, verdadeiramente, a fonte da luz e da
vida e o centro da história. A caridade que a inflama faz com que proclame a
Boa-Nova e, através dos sacramentos, distribua os seus frutos vivificantes. É
de Cristo redentor que partem o seu pensamento e a sua ação, quando, diante dos
dramas que dilaceram o mundo, ela reflete sobre o significado e os caminhos da
libertação e da verdadeira liberdade.
A verdade, a começar pela verdade sobre a redenção, que está no âmago do
mistério da fé, é, pois, a raiz e a regra da liberdade, fundamento e medida de
qualquer ação libertadora.
A verdade, condição da liberdade.
4. A abertura à plenitude da verdade impõe-se à consciência moral
do homem; este deve este deve procurá-la e estar pronto para acolhê-la, quando
ela se manifesta.
Segundo a ordem de Cristo Senhor, a verdade evangélica deve ser
apresentada a todos os homens, e estes têm o direito de que ela lhes seja
apresentada. Seu anúncio, na potência do Espírito, comporta o pleno respeito da
liberdade de cada um e a exclusão de qualquer forma de coação e de pressão.
O Espírito Santo introduz a Igreja e os discípulos de Cristo Jesus na «
verdade plena » (Jo 16, 13). Ele dirige o curso dos tempos e «
renova a face da terra » (Sl 104, 30). É Ele que se faz presente no
amadurecimento de uma consciência mais respeitosa da dignidade da pessoa
humana. O Espírito Santo encontra-se na origem da coragem, da audácia e do
heroísmo: « Onde se acha o Espírito do Senhor, aí está a liberdade » (2 Cor 3,
17).
CAPÍTULO I
A SITUAÇÃO DA LIBERDADE NO MUNDO DE
HOJE
I. Conquistas e ameaças do processo
moderno de libertação
A herança do cristianismo
5. Revelando ao homem a sua qualidade de pessoa livre, chamada a entrar
em comunhão com Deus, o Evangelho de Jesus Cristo provocou uma tomada de
consciência das profundidades – até então inimagináveis – da liberdade humana.
Assim, a busca da liberdade e a aspiração à libertação, que se encontram
entre os principais sinais dos tempos do mundo contemporâneo, têm sua raiz
primeira na herança do cristianismo. Esta afirmação é válida, mesmo quando elas
assumem formas aberrantes, chegando a se oporem à visão cristã do homem e do
seu destino. Sem essa referência ao Evangelho, a história dos séculos recentes,
no Ocidente, permaneceria incompreensível.
A época moderna
6. Desde a aurora do mundo moderno, na Renascença, pensava-se que o
retorno à Antiguidade em filosofia e nas ciências da natureza deveria
possibilitar ao homem a conquista da liberdade de pensamento e de ação, graças
ao conhecimento e ao controle das leis da natureza.
Por outro lado, Lutero, a partir da sua leitura de São Paulo, pretendia
lutar pela libertação do jugo da Lei, representada, a seus olhos, pela Igreja
do seu tempo.
Mas é, sobretudo, no Século das Luzes e na Revolução Francesa que o
apelo à liberdade ressoa com toda a sua força. Desde então, muitos veem a
história por vir como um irresistível processo de libertação que deve conduzir
o homem a uma era em que, enfim totalmente livre, ele poderá gozar a
felicidade, já a partir desta terra.
Rumo ao domínio sobre a natureza
7. Na perspectiva de uma tal ideologia de progresso, o homem pretendia
tornar-se senhor da natureza. A servidão, que até então era a sua, baseava-se
na ignorância e nos preconceitos. Extraindo da natureza os seus segredos, o
homem submetê-la-ia ao seu serviço. Dessa forma, a conquista da liberdade era a
meta que se buscava através do desenvolvimento da ciência e da técnica. Os
esforços despendidos alcançaram sucessos notáveis. Embora o homem não esteja
isento das catástrofes naturais, muitas das ameaças da natureza foram afastadas.
O alimento é assegurado a um número crescente de indivíduos. As possibilidades
de transporte e de comércio favorecem o intercâmbio dos recursos alimentares,
das matérias-primas, da força de trabalho, das capacidades técnicas, de sorte
que se pode razoavelmente prognosticar uma existência na dignidade e livre da
miséria para os seres humanos.
Conquistas sociais e políticas
8. O movimento moderno de libertação propunha-se uma finalidade política
e social. Ele deveria pôr um fim à dominação do homem sobre o homem e promover
a igualdade e a fraternidade de todos os homens. Que, nesse campo, tenham sido
alcançados resultados positivos, é um fato inegável. A escravidão e a servidão
legais foram abolidas. O direito de todos à cultura fez significativos
progressos. Em numerosos países, a lei reconhece a igualdade entre homem e
mulher, a participação de todos os cidadãos no exercício do poder político e os
mesmos direitos para todos. O racismo é rejeitado como contrário ao direito e à
justiça. A formulação dos direitos do homem significa uma consciência mais viva
da dignidade de todos os homens. Comparando-se com os sistemas anteriores de
dominação, as conquistas da liberdade e da igualdade, em numerosas sociedades,
são inegáveis.
Liberdade de pensar e de querer
9. Enfim e, sobretudo, o movimento moderno de libertação deveria trazer
ao homem a liberdade interior, sob a forma de liberdade de pensar e liberdade
de querer. Ele pretendia libertar o homem da superstição e dos medos
ancestrais, percebidos como outros tantos obstáculos ao seu desenvolvimento.
Era seu propósito dar ao homem a coragem e a audácia de se servir da sua razão,
sem que o temor o detivesse diante das fronteiras do desconhecido. Dessa forma,
especialmente nas ciências históricas e nas ciências humanas, desenvolveu-se um
novo conhecimento do homem, destinado a ajudá-lo a se compreender melhor, no
que diz respeito ao seu desenvolvimento pessoal ou às condições fundamentais da
formação da comunidade.
Ambiguidades do processo moderno de libertação
10. Quer se trate da conquista da natureza, da vida social e política ou
do domínio do homem sobre ele mesmo, em plano individual e coletivo, todos
podem constatar que não somente os progressos realizados estão longe de
corresponder às ambições iniciais, mas também que novas ameaças, novas
servidões e novos terrores surgiram, à medida que se ampliava o movimento
moderno de libertação. É um sinal de que graves ambiguidades acerca do sentido
mesmo da liberdade, já desde a sua origem, corroíam por dentro esse movimento.
O homem ameaçado por seu domínio da natureza
11. Foi assim que, na medida em que se libertava das ameaças da
natureza, o homem passou a sentir um medo crescente diante de si mesmo. A
técnica, subjugando sempre mais a natureza, corre o risco de destruir os
fundamentos de nosso próprio futuro, de modo que a humanidade de hoje torna-se
a inimiga das gerações futuras. Ao reduzir à servidão, com um poder cego, as
forças da natureza, não se está destruindo a liberdade dos homens de amanhã?
Que forças podem proteger o homem da escravidão de sua própria dominação?
Torna-se necessária uma capacidade de liberdade e de libertação totalmente nova
e que exige um processo de libertação inteiramente renovado.
Riscos da potência tecnológica
12. A força libertadora do conhecimento científico concretiza-se nas
grandes realizações tecnológicas. Quem dispõe das tecnologias, possui o poder
sobre a terra e sobre os homens. Daí nascem formas de desigualdade, até então
desconhecidas, entre os detentores do saber e aqueles que simplesmente utilizam
a técnica. A nova potência tecnológica está ligada ao poder econômico e leva à
sua concentração. Dessa forma, no interior dos povos e entre os povos,
formaram-se relações de dependência que, nos últimos vinte anos, deram ocasião
a uma nova reivindicação de libertação. Como impedir que a potência tecnológica
não se torne um poder de opressão de grupos humanos ou de povos inteiros?
Individualismo e coletivismo
13. Na área das conquistas sociais e políticas, uma das ambiguidades
fundamentais da afirmação da liberdade, no século das Luzes, está ligada à
concepção do sujeito dessa liberdade como indivíduo que se basta a si mesmo e
tendo com fim a satisfação de seu interesse próprio no gozo dos bens
terrestres. A ideologia individualista inspirada por tal concepção do homem
favoreceu, nos inícios da era industrial, a desigual repartição das riquezas, a
um ponto tal que os trabalhadores viram-se excluídos do acesso aos bens
essenciais, para cuja produção tinham contribuído e aos quais tinham direito.
Daí nasceram pujantes movimentos de libertação da miséria mantida pela
sociedade industrial.
Cristãos – leigos e pastores – não deixaram de lutar por um
reconhecimento equitativo dos legítimos direitos dos trabalhadores. Em favor
dessa causa, o Magistério da Igreja elevou a sua voz, em diversas ocasiões.
Muito frequentemente, porém, a justa reivindicação do movimento operário
conduziu a novas servidões, por inspirar-se em concepções que, ignorando a
vocação transcendente da pessoa humana, atribuíam ao homem um fim meramente
terrestre. Algumas vezes, ela voltou-se para projetos coletivistas, que
gerariam injustiças tão graves quanto às que pretendiam pôr um fim.
Novas formas de opressão
14. Dessa forma, a nossa época viu nascer os sistema totalitários e
formas de tirania, que não teriam sido possíveis em épocas anteriores à
expansão tecnológica. Por um lado, a perfeição tecnológica foi aplicada em
genocídios. Por outro lado, praticando o terrorismo, que causa a morte de
inúmeros inocentes, minorias pretendem derrotar inteiras nações.
O controle, hoje, pode insinuar-se até no interior dos indivíduos; e
mesmo as dependências criadas pelos sistemas de prevenção podem representar
potenciais ameaças de opressão. Uma falsa libertação das coações da sociedade é
procurada no recurso à droga, que, no mundo todo, leva muitos jovens à
autodestruição, lançando famílias inteiras na angústia e na dor.
Riscos de destruição total
15. Torna-se cada vez mais débil o reconhecimento de uma ordem jurídica
como garantia do relacionamento dentro da grande família dos povos. Quando a
confiança no direito não parece mais oferecer uma proteção suficiente, busca-se
a segurança e a paz em uma ameaça recíproca, que se torna um risco para toda a
humanidade. As forças que deveriam servir ao desenvolvimento da liberdade
servem para aumentar as ameaças. Os instrumentos de morte que se opõem, hoje,
são capazes de destruir toda a vida humana sobre a terra.
Novas relações de desigualdade
16. Entre as nações dotadas de poderio e as que dele são privadas
instalaram-se novas relações de desigualdade e de opressão. A busca do
interesse próprio parece ser a regra das relações internacionais, sem que se
leve em consideração o bem comum da humanidade.
O equilíbrio interno das nações pobres é rompido pela importação das
armas, introduzindo nelas um fator de divisão que conduz ao domínio de um grupo
sobre outro. Que forças poderiam eliminar o recurso sistemático às armas,
restituindo ao direito a sua autoridade?
Emancipação das nações jovens
17. É no contexto da desigualdade das relações de força que apareceram
os movimentos de emancipação das nações jovens, geralmente nações pobres, ainda
recentemente submetidas ao domínio colonial. Muito frequentemente, porém, o
povo é privado de uma independência duramente conquistada, por regimes ou
tiranias sem escrúpulos, que tripudiam impunemente sobre os direitos do homem.
Dessa forma, o povo, reduzido à impotência, apenas mudou de dono.
Permanece, no entanto, como um dos maiores fenômenos do nosso tempo, em
escala de inteiros continentes, o despertar da consciência do povo que,
esmagado pelo peso da secular miséria, aspira a uma vida na dignidade e na
justiça e está pronto a bater-se por sua liberdade.
A moral e Deus: obstáculos para a libertação?
18. Com relação ao movimento moderno de libertação interior do homem,
deve-se constatar que o esforço para libertar de seus limites o pensamento e a
vontade chegou ao ponto de considerar que a moralidade como tal constituía um
limite irracional que o homem, decidido a se tornar senhor de si mesmo, devia
ultrapassar.
Mais ainda: para muitos, é o próprio Deus que seria a alienação
específica do homem. Entre a afirmação de Deus e a liberdade humana haveria uma
radical incompatibilidade. Rejeitando a fé em Deus, o homem, enfim,
tornar-se-ia livre.
Questões angustiantes
19. Aqui se encontra a raiz das tragédias que acompanham a história
moderna da liberdade. Por que essa história, apesar de grandes conquistas que,
aliás, permanecem sempre frágeis, experimenta frequentes recaídas na alienação
e vê surgir novas servidões? Por que movimentos de libertação, que suscitaram
imensas esperanças, vão desaguar em regimes para os quais a liberdade dos
cidadãos, a começar pela primeira delas, que é a liberdade religiosa, é
o primeiro inimigo?
Quando o homem pretende libertar-se da lei moral e tornar-se
independente de Deus, longe de conquistar a sua liberdade, ele a destrói.
Fugindo da medida da verdade, ele torna-se presa do arbitrário; entre os
homens, as relações fraternas são abolidas, para dar lugar ao terror, ao ódio e
ao medo.
O profundo movimento moderno de libertação permanece ambíguo, porque foi
contaminado por erros mortais acerca da condição do homem e da sua liberdade.
Ele carrega, simultaneamente, promessas de verdadeira liberdade e ameaças de
mortais servidões.
II. A liberdade na experiência do Povo
de Deus
Igreja e liberdade
20. Porque consciente dessa mortal ambiguidade, a Igreja, pelo seu
Magistério, elevou a sua voz, ao longo dos últimos séculos, alertando para os
desvios que ameaçam desvirtuar o élan libertador, transformando-o em amargas
decepções. Naqueles momentos, muitas vezes, ela foi incompreendida. Com o recuo
do tempo, torna-se possível reconhecer a exatidão do seu discernimento.
Foi em nome da verdade sobre o homem, criado à imagem de Deus, que a
Igreja interveio.Entretanto, acusam-na de ser um obstáculo no caminho da
libertação. Sua constituição hierárquica opor-se-ia à igualdade; seu Magistério
iria contra a liberdade de pensamento. Certamente, houve erros de julgamento ou
omissões graves, de que, ao longo dos séculos, os cristãos foram responsáveis. Mas
tais objeções desconhecem a verdadeira natureza das coisas. A diversidade dos
carismas no povo de Deus, que são carismas de serviço, não é contrária à igual
dignidade das pessoas e à sua comum vocação à santidade.
A liberdade de pensamento, como condição de busca da verdade em todos os
domínios do saber humano, não significa que a razão humana deva fechar-se às
luzes da Revelação, cujo depósito Deus confiou à sua Igreja. Abrindo-se à
verdade divina, a razão criada encontra um desabrochamento e uma perfeição que
constituem uma forma eminente de liberdade. Por outro lado, o Concílio Vaticano
II reconheceu plenamente a legítima autonomia das ciências, como também
das atividades de ordem política.
A liberdade dos pequeninos e dos pobres
21. Um dos principais erros que contaminou gravemente o processo de
libertação, desde o Iluminismo, consiste na convicção largamente difundida de
que os progressos realizados no campo das ciências, da técnica e da economia,
deveriam servir de fundamento para a conquista da liberdade. Desconhecia-se,
dessa forma, a profundidade da mesma liberdade e das suas exigências.
Essa realidade profunda da liberdade, a Igreja sempre a experimentou,
sobretudo através da vida de uma multidão de fiéis, especialmente entre os
pequeninos e os pobres. Na sua fé, eles sabem que são objeto do amor infinito
de Deus. Cada um deles pode afirmar: « Vivo pela fé no Filho de Deus, que me
amou e se entregou a si mesmo por mim » (Gl 2, 20b). Tal é a sua
dignidade, que nenhuma das potências lhes pode arrancar; tal é a alegria
libertadora neles presente. Sabem que a eles é dirigida também a palavra de
Jesus: « Não mais vos chamo servos, pois o servo não sabe o que seu amo faz;
mas eu vos chamo amigos, pois tudo o que ouvi do Pai eu vos dei a conhecer » (Jo 15,
15). Essa participação no conhecimento de Deus é a sua emancipação com relação
à pretensão de dominação por parte dos detentores do saber: « Todos possuís a
ciência ... e não tendes necessidade de que alguém vos ensine » (1 Jo 2,
20b. 27b). Eles têm consciência também de participarem do conhecimento mais
elevado a que a humanidade é chamada. Sabem-se amados por Deus como todos
os outros e mais que todos os outros. Vivem, assim, na liberdade que provém da
verdade e do amor.
Recursos da religiosidade popular
22. O mesmo sentido da fé do povo de Deus, na sua devoção cheia de
esperança à cruz de Jesus, percebe a força contida no mistério de Cristo
redentor. Longe, pois, de desprezar ou querer suprimir as formas de
religiosidade popular que essa devoção assume, é preciso, ao contrário,
destacar e aprofundar toda a sua significação e todas as suas implicações. Ela
constitui um fato de dimensão teológica e pastoral fundamental: são os pobres,
objeto da predileção divina, que melhor compreendem – e como que por instinto –
que a libertação mais radical, que é libertação do pecado e da morte, é aquela
que foi realizada pela morte e ressurreição de Cristo.
Dimensão soteriológica e ética da libertação
23. A força dessa libertação penetra e transforma em profundidade o
homem e sua história, em sua atualidade presente, e anima o seu élan escatológico.
O sentido primário e fundamental da libertação que assim se manifesta é o
sentido soteriológico: o homem é libertado da escravidão radical do mal e do
pecado.
Nessa experiência da salvação, o homem descobre o verdadeiro sentido da
sua liberdade, já que a libertação é restituição da liberdade. Ela é também
educação da liberdade, isto é, educação para o reto uso da liberdade. Dessa
forma, à dimensão soteriológica da libertação acrescenta-se a sua dimensão
ética.
Uma nova fase da história da liberdade
24. Em graus diversos, o sentido da fé, que se encontra na origem de uma
experiência radical de libertação e da liberdade, impregnou a cultura e os
costumes dos povos cristãos.
Hoje, porém, de um modo totalmente novo, por causa dos terríveis
desafios que a humanidade deve enfrentar, torna-se necessário e urgente que o
amor de Deus e a liberdade na verdade e na justiça imprimam a sua marca nas,
relações entre os homens e entre os povos e animem a vida das culturas.
Pois onde faltam a verdade e o amor, o processo de libertação leva à
morte de uma liberdade que terá perdido qualquer base de apoio.
Abre-se diante de nós uma nova fase da história da liberdade. As
capacidades libertadoras da ciência, da técnica, do trabalho, da economia e da
ação política, só darão frutos se encontrarem sua inspiração e medida na
verdade e no amor mais fortes do que o sofrimento, revelados aos homens por
Jesus Cristo.
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