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Evangelho, liberdade e libertação
43. A história humana, marcada pela experiência do pecado, levar-nos-ia
ao desespero, se Deus tivesse abandonado sua criatura a ela mesma. Mas as
promessas divinas de libertação e o seu vitorioso cumprimento na morte e
ressurreição de Cristo são o fundamento da « alegre esperança » na qual a
comunidade cristã busca a força para agir resoluta e eficazmente ao serviço do
amor, da justiça e da paz. O Evangelho é uma mensagem de liberdade e uma força
de libertação que realiza a esperança de
Israel, fundada sobre a palavra dos Profetas. Esta apoiava-se na ação de Javé
que, antes mesmo de intervir como « goél », libertador, redentor,
salvador do seu Povo, escolhera-o gratuitamente em Abraão.
I. A libertação no
Antigo Testamento
O Êxodo e as
intervenções libertadoras de Javé
44. No Antigo Testamento, a ação libertadora de Javé, que serve de
modelo e referência a todas as outras, é o Êxodo do Egito, « casa de servidão
». Se Deus arranca seu Povo de uma dura escravidão econômica, política e
cultural, é para fazer dele, através de Aliança do Sinai, « um reino de
sacerdotes e uma nação santa » (Ex 19, 6). Deus quer ser
adorado por homens livres. Todas as libertações ulteriores do Povo de Israel
tendem a conduzi-lo a essa liberdade em plenitude que ele só pode encontrar na
comunhão com o seu Deus.
O acontecimento principal e fundacional do Êxodo tem, portanto, um
significado ao mesmo tempo religioso e político. Deus liberta o seu Povo,
dá-lhe uma descendência, uma terra, uma lei, mas dentro de uma Aliança e para
uma Aliança. Não se poderia, portanto, isolar o aspecto político,
atribuindo-lhe um valor por si mesmo; é necessário considerá-lo à luz do
desígnio de natureza religiosa no qual ele se integra.
A Lei de Deus
45. Em seu desígnio de salvação, Deus deu sua Lei a Israel. Juntamente
com os preceitos morais universais do Decálogo, ela continha também normas
cultuais e civis, que deviam regulamentar a vida do povo escolhido por Deus
para ser sua testemunha entre as nações.
O amor de Deus acima de todas as coisas e do próximo como a si
mesmo já constitui o centro desse conjunto de leis. Mas a justiça, que
deve presidir as relações entre os homens, e o direito, que é a sua expressão
jurídica, pertencem também à trama mais característica da Lei bíblica. Os
Códigos e a pregação dos Profetas, como também os Salmos, referem-se
constantemente a ambas, frequentemente unido-as. É em tal contexto que deve ser apreciado o cuidado da Lei bíblica pelos
pobres, os desprovidos, a viúva e o órfão: a eles é devida a justiça, segundo o
ordenamento jurídico do Povo de Deus. Já existem, portanto,
o ideal e o esboço de uma sociedade centralizada no culto do Senhor e fundada
na justiça e no direito animados pelo amor.
O ensinamento dos Profetas
45. Os Profetas não cessam de lembrar a Israel as exigências da Lei da
Aliança. Eles denunciam no coração endurecido do homem a fonte das repetidas
transgressões e anunciam uma Nova Aliança, na qual Deus transformará os
corações, gravando neles a Lei do seu Espírito.
Anunciando e preparando essa nova era, eles denunciam com vigor a
injustiça perpetrada contra os pobres; em favor destes, fazem-se porta-vozes de
Deus. Javé é o supremo recurso dos pequeninos e dos oprimidos. Será missão do
Messias defendê-los.
A situação do pobre é uma situação de injustiça contrária à Aliança. Por
isso a Lei da Aliança protege-o com preceitos que refletem a própria atitude de
Deus ao libertar Israel da servidão do Egito.41 A injustiça para com os pequeninos e os pobres é um grave pecado, que
quebra a comunhão com Javé.
Os «pobres de Javé»
47. A partir de todas as formas de pobreza, de injustiça sofrida e de
aflição, os « justos » e os « pobres de Javé », nos Salmos, fazem subir
até Ele as suas súplicas. Eles sofrem em seus corações pela
servidão â que foi reduzido, por causa de seus pecados, o povo «de dura cerviz
». Suportam a perseguição, o martírio e a morte, mas vivem na esperança da
libertação. Acima de tudo, põem a sua confiança em Javé, a quem recomendam a
própria causa.
Os « pobres de Javé » sabem que a comunhão com Ele é o bem mais precioso, no qual o homem encontra a sua verdadeira
liberdade. Para eles, o mal mais
trágico é a perda dessa comunhão. É por isso que o seu combate contra a
injustiça assume o sentido mais profundo e a sua eficácia na vontade de ser
libertados da servidão do pecado.
No limiar do Novo Testamento
48. No limiar do Novo Testamento, os « pobres de Javé» constituem as
primícias de um « povo humilde e pobre », que vive na esperança da libertação
de Israel.
Personificando essa esperança, Maria ultrapassa o limiar do Antigo
Testamento. Ela anuncia com alegria o acontecimento messiânico e louva o Senhor
que se prepara para libertar o seu Povo.Em seu hino de louvor à divina
misericórdia, a humilde Virgem, para quem o povo dos pobres volta-se espontaneamente
e com tanta confiança, canta o mistério da salvação e a sua força de
transformação. O senso da fé, tão vivo nos pequeninos, sabe reconhecer
imediatamente toda a riqueza do Magnificat, ao mesmo tempo
soteriológica e ética.
II. Significação cristológica
do Antigo Testamento
A luz de Cristo
49. O Êxodo, a Aliança, a Lei, a voz dos Profetas e a espiritualidade
dos « pobres de Javé » não atingem a sua plena significação a não ser em
Cristo.
A Igreja lê o Antigo Testamento à luz de Cristo morto e ressuscitado por
nós. A Igreja vê a sua própria prefiguração no Povo de Deus da Antiga Aliança,
encarnado no corpo concreto de uma nação particular, política e culturalmente
constituída, que se inseria na trama da história como testemunha de Javé diante
das nações, até c término do tempo da preparação e das figuras. Na plenitude
dos tempos, vinda com Cristo, os filhos de Abraão foram então chamados com
todas as nações a entrar na Igreja de Cristo, para formar com elas um só Povo
de Deus, espiritual e universal.
III. A libertação
cristã
A Boa-Nova anunciada aos pobres
50. Jesus anuncia a Boa-Nova do Reino de Deus e chama os homens à
coversão.«Os pobres são evangelizados » (Mt 11, 5): retomando a palavra
do Profeta, Jesus manifesta a sua ação messiânica
em favor daqueles que esperam a salvação de Deus.
Mais ainda, o Filho de Deus que se fez pobre por nosso amor, quer ser reconhecido nos pobres, naqueles que sofrem ou são perseguidos: «
o que fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes » (Mt 25, 40).
O Mistério Pascal
51. Mas é, antes de tudo, pela força do seu Mistério Pascal que Cristo
nos libertou.55 Por sua obediência perfeita na Cruz e
pela glória da sua ressurreição, o Cordeiro de Deus tirou o pecado do mundo e abriu-nos
o caminho da libertação definitiva.
Por nosso serviço e nosso amor, mas também pelo oferecimento de nossas
provações e sofrimentos, nós participamos do único sacrifício redentor de
Cristo, completando em nós « o que falta das tribulações de Cristo pelo seu
Corpo, que é a Igreja » (Cl 1, 24), na
expectativa da ressurreição dos mortos.
Graça, reconciliação e libertade
52. A medula da experiência cristã da liberdade encontra-se na
justificação pela graça da fé e dos sacramentos da Igreja. Essa graça liberta-nos
do pecado e nos introduz na comunhão com Deus. Pela morte e ressurreição de
Cristo, o perdão nos é oferecido. A experiência da nossa reconciliação com o
Pai é fruto do Espírito Santo. Deus revela-se a nós como o Pai de misericórdia,
diante de quem podemos apresentar-nos com uma confiança total.
Reconciliados com Ele e recebendo aquela paz de Cristo que o mundo
não pode dar, somos chamados a ser, entre os homens,
construtores de paz.
Em Cristo, podemos vencer o pecado e a morte não nos separa mais de
Deus; ela será finalmente destruída por ocasião da nossa ressurreição
semelhante à de Jesus. O próprio « cosmos », cujo centro e
vértice é o homem, espera ser « liberto da escravidão da corrupção para entrar
na liberdade da glória dos filhos de Deus » (Rm 8, 21). Desde já, Satã é derrotado; ele, que detém o poder da morte, foi
reduzido à impotência pela morte de Cristo. Recebemos alguns
sinais que antecipam a glória futura.
Luta contra a escravidão do pecado
53. A liberdade, trazida por Cristo no Espírito Santo restituiu-nos a
capacidade, de que o pecado nos privara, de amar a Deus acima de todas as
coisas e de com Ele permanecer em comunhão.
Somos libertados do amor desordenado de nós mesmos, que é a fonte do
desprezo do próximo e das relações de domínio entre os homens.
No entanto, até o retorno glorioso do Ressuscitado, o mistério de
iniquidade está sempre em ação no mundo. São Paulo advertiu-nos: « É para a
liberdade que Cristo nos libertou » (Gl 5, 1). É preciso, pois, perseverar e lutar para não recair sob o jugo da
escravidão. Nossa existência é um combate espiritual pela vida segundo o
Evangelho e com as armas de Deus. Mas recebemos a força
e a certeza da nossa vitória sobre o mal, vitória do amor de Cristo ao qual
nada pode resistir.
O Espírito e a Lei
54. São Paulo proclama o dom da Lei Nova do Espírito, em oposição à
lei da carne ou da cobiça que inclina o homem ao mal e torna-o incapaz de
escolher o bem. Essa falta de harmonia e essa fraqueza
interior não abolem a liberdade e a responsabilidade do homem, mas comprometem
o seu exercício em vista do bem. É isso que faz o Apóstolo exclamar: « Não faço
o bem que eu quero, mas pratico o mal que não quero » (Rm 7, 19). Com razão, ele fala da « servidão do pecado » e da « escravidão
da lei », pois ao homem pecador, a lei, que ele não pode interiorizar, aparece
como opressora.
No entanto, São Paulo reconhece que a Lei conserva seu valor para o
homem e para o cristão, porque « ela é santa, e santo, justo e bom é o preceito
» (Rm 7, 12).64 Ele reafirma o Decálogo, pondo-o em relação com a caridade, que é a sua
verdadeira plenitude.65 Além disso, ele sabe
muito bem que uma ordem jurídica é necessária para o desenvolvimento da vida
social. Mas a novidade que ele proclama, é que
Deus nos deu seu Filho « a fim de que o preceito da Lei se cumpra em nós » (Rm 8, 4).
O próprio Senhor Jesus enunciou os preceitos da Nova Lei, no Sermão da
Montanha; pelo seu sacrifício oferecido sobre a Cruz e por sua ressurreição
gloriosa, ele venceu as forças do pecado e obteve-nos a graça do Espírito
Santo, que torna possível a perfeita observância da lei de Deus e o acesso
ao perdão se recairmos no pecado. O Espírito que habita em nossos corações é a
fonte da verdadeira liberdade.
Pelo sacrifício de Cristo, as prescrições cultuais do Antigo Testamento
tornaram-se obsoletas. Quanto às normas jurídicas da vida social e política de
Israel, a Igreja apostólica, enquanto Reino de Deus inaugurado na terra, teve a
consciência de não ser mais ligada a elas. Isso fez compreender à comunidade
cristã que as leis e os atos das autoridades dos diversos povos, embora
legítimos e dignos de obediência, não poderiam nunca,
enquanto promanam dessas mesmas autoridades, ter a pretensão de assumir um
caráter sagrado. À luz do Evangelho, muitas leis e estruturas parecem, antes,
trazer consigo a marca do pecado, prolongando a sua influência opressiva na
sociedade.
IV. O Mandamento novo
O Amor, dom do Espírito
55. O Amor de Deus, derramado em nossos corações pelo Espírito Santo,
implica o amor do próximo. Relembrando o primeiro mandamento, Jesus acrescenta
imediatamente: « O segundo é semelhante a esse: Amarás o teu próximo como a ti
mesmo. Desses dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas » (Mt 22, 39-40). E São Paulo diz que a caridade é o pleno cumprimento da Lei.
O amor do próximo não conhece limites, estende-se aos inimigos e aos
perseguidores. Imagem da perfeição do Pai, a perfeição à qual deve tender o
discípulo reside na misericórdia. A parábola do Bom
Samaritano demonstra que o amor cheio de compaixão, que se põe a serviço do
próximo, destrói os preconceitos que sublevam os grupos étnicos ou sociais uns
contra os outros. Todos os textos do Novo Testamento
apresentam, com uma riqueza inesgotável, todos os sentimentos de que é portador
o amor cristão pelo próximo.72
O amor do próximo
56. O amor cristão, gratuito e universal, recebe a sua natureza do amor
de Cristo que deu a sua vida por nós: « Como eu vos amei, amai-vos também uns
aos outros » (Jo 13, 34-35).73 Tal é o « mandamento novo » para os discípulos.
À luz desse mandamento, São Tiago lembra severamente aos ricos o seu
dever e São João afirma que quem possui riquezas deste mundo e fecha
o seu coração a seu irmão que passa necessidade, não pode ter o amor de Deus
vivendo nele.75 O amor do irmão é a pedra de toque do
amor de Deus: « Quem não ama seu irmão, a quem vê, a Deus, a quem não vê, não
poderá amar » (1 Jo 4, 20). São Paulo
sublinha, com energia, o laço existente entre a participação no sacramento do
Corpo e Sangue de Cristo e a partilha com o irmão que se encontra em
necessidade.
Justiça e caridade
57. O amor evangélico e a vocação de filho de Deus, à qual todos os
homens são chamados, têm como consequência a exigência, direta e imperativa, do
respeito de cada ser humano em seus direitos à vida e à dignidade. Não existe
distância entre o amor do próximo e a vontade de justiça. Opor amor e justiça
seria desnaturar a ambos. Mais ainda, o sentido da misericórdia completa o da
justiça, impedindo a esta última de se fechar no círculo da vingança.
As desigualdades iníquas e todas as formas de opressão, que hoje atingem
milhões de homens e de mulheres, estão em aberta contradição com o Evangelho de
Cristo e não podem deixar tranquila a consciência de nenhum cristão.
A Igreja, na sua docilidade ao Espírito, avança fielmente pelos caminhos
da libertação autêntica. Seus membros têm consciência de suas falhas e de seus
recuos nessa busca. Mas uma multidão de cristãos, desde o tempo dos Apóstolos,
tem comprometido suas forças e sua vida pela libertação de todas as formas de
opressão e pela promoção da dignidade humana. A experiência dos santos e o
exemplo das inúmeras obras ao serviço do próximo constituem um estímulo e uma
luz, em vista das iniciativas libertadoras que hoje se impõem.
V. A Igreja, Povo de
Deus na Nova Aliança
Rumo à plenitude da liberdade
58. O Povo de Deus na Nova Aliança é a Igreja de Cristo. Sua lei è o
mandamento do amor. No coração dos seus membros, o Espírito habita como em um
templo. Ela é aqui na terra, germe e começo do Reino de Deus, que receberá a
sua realização definitiva no final dos tempos, com a ressurreição dos mortos e
a renovação de toda a criação.
Possuindo, dessa forma, o penhor do Espírito, o Povo de Deus é conduzido à plenitude da liberdade. A nova Jerusalém
que, com fervor, nós esperamos, é chamada, com razão, cidade da liberdade, em
seu sentido mais alto. Então, « Deus enxugará toda lágrima dos
seus olhos, pois nunca mais haverá morte, nem luto, nem clamor, e nem dor
haverá mais. Sim! As coisas antigas se foram » (Ap 31, 4). A esperança é a expectativa certa dos « novos céus e nova terra,
onde habitará a justiça » (2 Pd 3, 13).
O encontro final com Cristo
59. A transfiguração da Igreja, chegada ao termo da sua peregrinação, é
realizada pelo Cristo ressuscitado e não anula, de forma alguma, o destino
pessoal de cada um, ao final da própria vida. Cada homem, se julgado digno
diante do tribunal de Cristo por ter usado bem o seu livre arbítrio na graça de
Deus, alcançará a bem-aventurança. Tornar-se-á
semelhante a Deus, pois vê-lo-á tal como Ele é. O dom divino da bem-aventurança eterna é a exaltação da mais alta
liberdade que possa conceber.
Esperança escatológica e
empenho pela libertação temporal
60. Esta esperança não enfraquece o esforço pelo progresso da cidade
terrestre, más, pelo contrario, dá-lhe sentido e força. Convém, certamente,
distinguir cuidadosamente progresso terrestre e crescimento do Reino, que não
são da mesma ordem. Entretanto, tal distinção não é uma separação; pois a
vocação do homem à vida eterna não suprime e sim confirma a sua missão de pôr
em obra as energias e os meios que recebeu do Criador para desenvolver a sua
vida temporal.
Iluminada pelo Espírito do Senhor, a Igreja de Cristo pode discernir,
nos sinais dos tempos, os que trazem consigo promessas de libertação e outros,
que são enganadores e ilusórios. Ela convoca os homens e as sociedades a vencer
as situações de pecado e de injustiça, e a estabelecer as condições de uma
verdadeira liberdade. Ela tem consciência de todos estes bens – dignidade
humana, união fraterna, liberdade – que constituem o fruto de esforços
coerentes com a vontade de Deus. Encontrá-los-emos « lavados de toda mancha,
iluminados e transfigurados, quando Cristo apresentará ao Pai o reino eterno e
universal », que é um reino de liberdade.
A espera vigilante e ativa da vinda do Reino é também a de uma justiça
enfim perfeita, para os vivos e para os mortos, para os homens de todos os
tempos e de todos os lugares, que Jesus Cristo, como Juiz supremo, instaurará. Uma tal promessa, que ultrapassa todas as possibilidades humanas, diz
respeito diretamente à nossa vida neste mundo. Pois uma verdadeira justiça deve
estender-se a todos, respondendo à imensa soma de sofrimentos suportados por
todas as gerações. Na realidade, sem a ressurreição dos mortos e o julgamento
do Senhor, não há justiça, no sentido pleno desse termo, A promessa de
ressurreição vem gratuitamente ao encontro do anseio de verdadeira justiça, que
reside no coração humano.
Evangelho, liberdade e libertação
43. A história humana, marcada pela experiência do pecado, levar-nos-ia
ao desespero, se Deus tivesse abandonado sua criatura a ela mesma. Mas as
promessas divinas de libertação e o seu vitorioso cumprimento na morte e
ressurreição de Cristo são o fundamento da « alegre esperança » na qual a
comunidade cristã busca a força para agir resoluta e eficazmente ao serviço do
amor, da justiça e da paz. O Evangelho é uma mensagem de liberdade e uma força
de libertação que realiza a esperança de
Israel, fundada sobre a palavra dos Profetas. Esta apoiava-se na ação de Javé
que, antes mesmo de intervir como « goél », libertador, redentor,
salvador do seu Povo, escolhera-o gratuitamente em Abraão.
I. A libertação no
Antigo Testamento
O Êxodo e as
intervenções libertadoras de Javé
44. No Antigo Testamento, a ação libertadora de Javé, que serve de
modelo e referência a todas as outras, é o Êxodo do Egito, « casa de servidão
». Se Deus arranca seu Povo de uma dura escravidão econômica, política e
cultural, é para fazer dele, através de Aliança do Sinai, « um reino de
sacerdotes e uma nação santa » (Ex 19, 6). Deus quer ser
adorado por homens livres. Todas as libertações ulteriores do Povo de Israel
tendem a conduzi-lo a essa liberdade em plenitude que ele só pode encontrar na
comunhão com o seu Deus.
O acontecimento principal e fundacional do Êxodo tem, portanto, um
significado ao mesmo tempo religioso e político. Deus liberta o seu Povo,
dá-lhe uma descendência, uma terra, uma lei, mas dentro de uma Aliança e para
uma Aliança. Não se poderia, portanto, isolar o aspecto político,
atribuindo-lhe um valor por si mesmo; é necessário considerá-lo à luz do
desígnio de natureza religiosa no qual ele se integra.
A Lei de Deus
45. Em seu desígnio de salvação, Deus deu sua Lei a Israel. Juntamente
com os preceitos morais universais do Decálogo, ela continha também normas
cultuais e civis, que deviam regulamentar a vida do povo escolhido por Deus
para ser sua testemunha entre as nações.
O amor de Deus acima de todas as coisas e do próximo como a si
mesmo já constitui o centro desse conjunto de leis. Mas a justiça, que
deve presidir as relações entre os homens, e o direito, que é a sua expressão
jurídica, pertencem também à trama mais característica da Lei bíblica. Os
Códigos e a pregação dos Profetas, como também os Salmos, referem-se
constantemente a ambas, frequentemente unido-as. É em tal contexto que deve ser apreciado o cuidado da Lei bíblica pelos
pobres, os desprovidos, a viúva e o órfão: a eles é devida a justiça, segundo o
ordenamento jurídico do Povo de Deus. Já existem, portanto,
o ideal e o esboço de uma sociedade centralizada no culto do Senhor e fundada
na justiça e no direito animados pelo amor.
O ensinamento dos Profetas
45. Os Profetas não cessam de lembrar a Israel as exigências da Lei da
Aliança. Eles denunciam no coração endurecido do homem a fonte das repetidas
transgressões e anunciam uma Nova Aliança, na qual Deus transformará os
corações, gravando neles a Lei do seu Espírito.
Anunciando e preparando essa nova era, eles denunciam com vigor a
injustiça perpetrada contra os pobres; em favor destes, fazem-se porta-vozes de
Deus. Javé é o supremo recurso dos pequeninos e dos oprimidos. Será missão do
Messias defendê-los.
A situação do pobre é uma situação de injustiça contrária à Aliança. Por
isso a Lei da Aliança protege-o com preceitos que refletem a própria atitude de
Deus ao libertar Israel da servidão do Egito.41 A injustiça para com os pequeninos e os pobres é um grave pecado, que
quebra a comunhão com Javé.
Os «pobres de Javé»
47. A partir de todas as formas de pobreza, de injustiça sofrida e de
aflição, os « justos » e os « pobres de Javé », nos Salmos, fazem subir
até Ele as suas súplicas. Eles sofrem em seus corações pela
servidão â que foi reduzido, por causa de seus pecados, o povo «de dura cerviz
». Suportam a perseguição, o martírio e a morte, mas vivem na esperança da
libertação. Acima de tudo, põem a sua confiança em Javé, a quem recomendam a
própria causa.
Os « pobres de Javé » sabem que a comunhão com Ele é o bem mais precioso, no qual o homem encontra a sua verdadeira
liberdade. Para eles, o mal mais
trágico é a perda dessa comunhão. É por isso que o seu combate contra a
injustiça assume o sentido mais profundo e a sua eficácia na vontade de ser
libertados da servidão do pecado.
No limiar do Novo Testamento
48. No limiar do Novo Testamento, os « pobres de Javé» constituem as
primícias de um « povo humilde e pobre », que vive na esperança da libertação
de Israel.
Personificando essa esperança, Maria ultrapassa o limiar do Antigo
Testamento. Ela anuncia com alegria o acontecimento messiânico e louva o Senhor
que se prepara para libertar o seu Povo.Em seu hino de louvor à divina
misericórdia, a humilde Virgem, para quem o povo dos pobres volta-se espontaneamente
e com tanta confiança, canta o mistério da salvação e a sua força de
transformação. O senso da fé, tão vivo nos pequeninos, sabe reconhecer
imediatamente toda a riqueza do Magnificat, ao mesmo tempo
soteriológica e ética.
II. Significação cristológica
do Antigo Testamento
A luz de Cristo
49. O Êxodo, a Aliança, a Lei, a voz dos Profetas e a espiritualidade
dos « pobres de Javé » não atingem a sua plena significação a não ser em
Cristo.
A Igreja lê o Antigo Testamento à luz de Cristo morto e ressuscitado por
nós. A Igreja vê a sua própria prefiguração no Povo de Deus da Antiga Aliança,
encarnado no corpo concreto de uma nação particular, política e culturalmente
constituída, que se inseria na trama da história como testemunha de Javé diante
das nações, até c término do tempo da preparação e das figuras. Na plenitude
dos tempos, vinda com Cristo, os filhos de Abraão foram então chamados com
todas as nações a entrar na Igreja de Cristo, para formar com elas um só Povo
de Deus, espiritual e universal.
III. A libertação
cristã
A Boa-Nova anunciada aos pobres
50. Jesus anuncia a Boa-Nova do Reino de Deus e chama os homens à
coversão.«Os pobres são evangelizados » (Mt 11, 5): retomando a palavra
do Profeta, Jesus manifesta a sua ação messiânica
em favor daqueles que esperam a salvação de Deus.
Mais ainda, o Filho de Deus que se fez pobre por nosso amor, quer ser reconhecido nos pobres, naqueles que sofrem ou são perseguidos: «
o que fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes » (Mt 25, 40).
O Mistério Pascal
51. Mas é, antes de tudo, pela força do seu Mistério Pascal que Cristo
nos libertou.55 Por sua obediência perfeita na Cruz e
pela glória da sua ressurreição, o Cordeiro de Deus tirou o pecado do mundo e abriu-nos
o caminho da libertação definitiva.
Por nosso serviço e nosso amor, mas também pelo oferecimento de nossas
provações e sofrimentos, nós participamos do único sacrifício redentor de
Cristo, completando em nós « o que falta das tribulações de Cristo pelo seu
Corpo, que é a Igreja » (Cl 1, 24), na
expectativa da ressurreição dos mortos.
Graça, reconciliação e libertade
52. A medula da experiência cristã da liberdade encontra-se na
justificação pela graça da fé e dos sacramentos da Igreja. Essa graça liberta-nos
do pecado e nos introduz na comunhão com Deus. Pela morte e ressurreição de
Cristo, o perdão nos é oferecido. A experiência da nossa reconciliação com o
Pai é fruto do Espírito Santo. Deus revela-se a nós como o Pai de misericórdia,
diante de quem podemos apresentar-nos com uma confiança total.
Reconciliados com Ele e recebendo aquela paz de Cristo que o mundo
não pode dar, somos chamados a ser, entre os homens,
construtores de paz.
Em Cristo, podemos vencer o pecado e a morte não nos separa mais de
Deus; ela será finalmente destruída por ocasião da nossa ressurreição
semelhante à de Jesus. O próprio « cosmos », cujo centro e
vértice é o homem, espera ser « liberto da escravidão da corrupção para entrar
na liberdade da glória dos filhos de Deus » (Rm 8, 21). Desde já, Satã é derrotado; ele, que detém o poder da morte, foi
reduzido à impotência pela morte de Cristo. Recebemos alguns
sinais que antecipam a glória futura.
Luta contra a escravidão do pecado
53. A liberdade, trazida por Cristo no Espírito Santo restituiu-nos a
capacidade, de que o pecado nos privara, de amar a Deus acima de todas as
coisas e de com Ele permanecer em comunhão.
Somos libertados do amor desordenado de nós mesmos, que é a fonte do
desprezo do próximo e das relações de domínio entre os homens.
No entanto, até o retorno glorioso do Ressuscitado, o mistério de
iniquidade está sempre em ação no mundo. São Paulo advertiu-nos: « É para a
liberdade que Cristo nos libertou » (Gl 5, 1). É preciso, pois, perseverar e lutar para não recair sob o jugo da
escravidão. Nossa existência é um combate espiritual pela vida segundo o
Evangelho e com as armas de Deus. Mas recebemos a força
e a certeza da nossa vitória sobre o mal, vitória do amor de Cristo ao qual
nada pode resistir.
O Espírito e a Lei
54. São Paulo proclama o dom da Lei Nova do Espírito, em oposição à
lei da carne ou da cobiça que inclina o homem ao mal e torna-o incapaz de
escolher o bem. Essa falta de harmonia e essa fraqueza
interior não abolem a liberdade e a responsabilidade do homem, mas comprometem
o seu exercício em vista do bem. É isso que faz o Apóstolo exclamar: « Não faço
o bem que eu quero, mas pratico o mal que não quero » (Rm 7, 19). Com razão, ele fala da « servidão do pecado » e da « escravidão
da lei », pois ao homem pecador, a lei, que ele não pode interiorizar, aparece
como opressora.
No entanto, São Paulo reconhece que a Lei conserva seu valor para o
homem e para o cristão, porque « ela é santa, e santo, justo e bom é o preceito
» (Rm 7, 12).64 Ele reafirma o Decálogo, pondo-o em relação com a caridade, que é a sua
verdadeira plenitude.65 Além disso, ele sabe
muito bem que uma ordem jurídica é necessária para o desenvolvimento da vida
social. Mas a novidade que ele proclama, é que
Deus nos deu seu Filho « a fim de que o preceito da Lei se cumpra em nós » (Rm 8, 4).
O próprio Senhor Jesus enunciou os preceitos da Nova Lei, no Sermão da
Montanha; pelo seu sacrifício oferecido sobre a Cruz e por sua ressurreição
gloriosa, ele venceu as forças do pecado e obteve-nos a graça do Espírito
Santo, que torna possível a perfeita observância da lei de Deus e o acesso
ao perdão se recairmos no pecado. O Espírito que habita em nossos corações é a
fonte da verdadeira liberdade.
Pelo sacrifício de Cristo, as prescrições cultuais do Antigo Testamento
tornaram-se obsoletas. Quanto às normas jurídicas da vida social e política de
Israel, a Igreja apostólica, enquanto Reino de Deus inaugurado na terra, teve a
consciência de não ser mais ligada a elas. Isso fez compreender à comunidade
cristã que as leis e os atos das autoridades dos diversos povos, embora
legítimos e dignos de obediência, não poderiam nunca,
enquanto promanam dessas mesmas autoridades, ter a pretensão de assumir um
caráter sagrado. À luz do Evangelho, muitas leis e estruturas parecem, antes,
trazer consigo a marca do pecado, prolongando a sua influência opressiva na
sociedade.
IV. O Mandamento novo
O Amor, dom do Espírito
55. O Amor de Deus, derramado em nossos corações pelo Espírito Santo,
implica o amor do próximo. Relembrando o primeiro mandamento, Jesus acrescenta
imediatamente: « O segundo é semelhante a esse: Amarás o teu próximo como a ti
mesmo. Desses dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas » (Mt 22, 39-40). E São Paulo diz que a caridade é o pleno cumprimento da Lei.
O amor do próximo não conhece limites, estende-se aos inimigos e aos
perseguidores. Imagem da perfeição do Pai, a perfeição à qual deve tender o
discípulo reside na misericórdia. A parábola do Bom
Samaritano demonstra que o amor cheio de compaixão, que se põe a serviço do
próximo, destrói os preconceitos que sublevam os grupos étnicos ou sociais uns
contra os outros. Todos os textos do Novo Testamento
apresentam, com uma riqueza inesgotável, todos os sentimentos de que é portador
o amor cristão pelo próximo.72
O amor do próximo
56. O amor cristão, gratuito e universal, recebe a sua natureza do amor
de Cristo que deu a sua vida por nós: « Como eu vos amei, amai-vos também uns
aos outros » (Jo 13, 34-35).73 Tal é o « mandamento novo » para os discípulos.
À luz desse mandamento, São Tiago lembra severamente aos ricos o seu
dever e São João afirma que quem possui riquezas deste mundo e fecha
o seu coração a seu irmão que passa necessidade, não pode ter o amor de Deus
vivendo nele.75 O amor do irmão é a pedra de toque do
amor de Deus: « Quem não ama seu irmão, a quem vê, a Deus, a quem não vê, não
poderá amar » (1 Jo 4, 20). São Paulo
sublinha, com energia, o laço existente entre a participação no sacramento do
Corpo e Sangue de Cristo e a partilha com o irmão que se encontra em
necessidade.
Justiça e caridade
57. O amor evangélico e a vocação de filho de Deus, à qual todos os
homens são chamados, têm como consequência a exigência, direta e imperativa, do
respeito de cada ser humano em seus direitos à vida e à dignidade. Não existe
distância entre o amor do próximo e a vontade de justiça. Opor amor e justiça
seria desnaturar a ambos. Mais ainda, o sentido da misericórdia completa o da
justiça, impedindo a esta última de se fechar no círculo da vingança.
As desigualdades iníquas e todas as formas de opressão, que hoje atingem
milhões de homens e de mulheres, estão em aberta contradição com o Evangelho de
Cristo e não podem deixar tranquila a consciência de nenhum cristão.
A Igreja, na sua docilidade ao Espírito, avança fielmente pelos caminhos
da libertação autêntica. Seus membros têm consciência de suas falhas e de seus
recuos nessa busca. Mas uma multidão de cristãos, desde o tempo dos Apóstolos,
tem comprometido suas forças e sua vida pela libertação de todas as formas de
opressão e pela promoção da dignidade humana. A experiência dos santos e o
exemplo das inúmeras obras ao serviço do próximo constituem um estímulo e uma
luz, em vista das iniciativas libertadoras que hoje se impõem.
V. A Igreja, Povo de
Deus na Nova Aliança
Rumo à plenitude da liberdade
58. O Povo de Deus na Nova Aliança é a Igreja de Cristo. Sua lei è o
mandamento do amor. No coração dos seus membros, o Espírito habita como em um
templo. Ela é aqui na terra, germe e começo do Reino de Deus, que receberá a
sua realização definitiva no final dos tempos, com a ressurreição dos mortos e
a renovação de toda a criação.
Possuindo, dessa forma, o penhor do Espírito, o Povo de Deus é conduzido à plenitude da liberdade. A nova Jerusalém
que, com fervor, nós esperamos, é chamada, com razão, cidade da liberdade, em
seu sentido mais alto. Então, « Deus enxugará toda lágrima dos
seus olhos, pois nunca mais haverá morte, nem luto, nem clamor, e nem dor
haverá mais. Sim! As coisas antigas se foram » (Ap 31, 4). A esperança é a expectativa certa dos « novos céus e nova terra,
onde habitará a justiça » (2 Pd 3, 13).
O encontro final com Cristo
59. A transfiguração da Igreja, chegada ao termo da sua peregrinação, é
realizada pelo Cristo ressuscitado e não anula, de forma alguma, o destino
pessoal de cada um, ao final da própria vida. Cada homem, se julgado digno
diante do tribunal de Cristo por ter usado bem o seu livre arbítrio na graça de
Deus, alcançará a bem-aventurança. Tornar-se-á
semelhante a Deus, pois vê-lo-á tal como Ele é. O dom divino da bem-aventurança eterna é a exaltação da mais alta
liberdade que possa conceber.
Esperança escatológica e
empenho pela libertação temporal
60. Esta esperança não enfraquece o esforço pelo progresso da cidade
terrestre, más, pelo contrario, dá-lhe sentido e força. Convém, certamente,
distinguir cuidadosamente progresso terrestre e crescimento do Reino, que não
são da mesma ordem. Entretanto, tal distinção não é uma separação; pois a
vocação do homem à vida eterna não suprime e sim confirma a sua missão de pôr
em obra as energias e os meios que recebeu do Criador para desenvolver a sua
vida temporal.
Iluminada pelo Espírito do Senhor, a Igreja de Cristo pode discernir,
nos sinais dos tempos, os que trazem consigo promessas de libertação e outros,
que são enganadores e ilusórios. Ela convoca os homens e as sociedades a vencer
as situações de pecado e de injustiça, e a estabelecer as condições de uma
verdadeira liberdade. Ela tem consciência de todos estes bens – dignidade
humana, união fraterna, liberdade – que constituem o fruto de esforços
coerentes com a vontade de Deus. Encontrá-los-emos « lavados de toda mancha,
iluminados e transfigurados, quando Cristo apresentará ao Pai o reino eterno e
universal », que é um reino de liberdade.
A espera vigilante e ativa da vinda do Reino é também a de uma justiça
enfim perfeita, para os vivos e para os mortos, para os homens de todos os
tempos e de todos os lugares, que Jesus Cristo, como Juiz supremo, instaurará. Uma tal promessa, que ultrapassa todas as possibilidades humanas, diz
respeito diretamente à nossa vida neste mundo. Pois uma verdadeira justiça deve
estender-se a todos, respondendo à imensa soma de sofrimentos suportados por
todas as gerações. Na realidade, sem a ressurreição dos mortos e o julgamento
do Senhor, não há justiça, no sentido pleno desse termo, A promessa de
ressurreição vem gratuitamente ao encontro do anseio de verdadeira justiça, que
reside no coração humano.
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